Milagre não se traduz em conversão
Pense na história dos israelitas. Depois de salvos dos egípcios
na travessia do mar Vermelho, eles expressaram sua grande alegria com cântico
(Êx 15.1-18; Sl 106.22). Não é de admirar, pois haviam sido resgatados da morte
certa por um dos maiores milagres da história do Antigo Testamento. Mas esse
milagre "converteu" a nação? Provocou uma transformação duradoura que
os tirasse de uma postura de ignorância e incerteza e lhes confirmasse a fé,
culminando numa disposição para servir e obedecer a Deus? Os grandes milagres
do êxodo tiveram algum efeito moral permanente sobre a vida deles? Por tudo que
sabemos, a resposta é não. Mas apenas alguns dias depois, a euforia havia desaparecido
e em seu lugar surgiu o mau hábito de reclamar e murmurar contra as condições
no deserto (Êx 16.2,3).
Um mês depois, aqueles mesmos israelitas viram Deus descer sobre o monte
Sinai. Nem antes nem depois daquilo testemunhou-se uma revelação de Deus de
tamanha grandeza. Enquanto a montanha fumegava e estremecia, eles tremiam de
medo e entusiasmo (Êx 19.16; 20.18). Tão grande foi o efeito, que eles pediram
a Moisés que falasse com Deus em nome deles, pois o som da voz divina era
terrível demais para ser suportado (Êx 20.19). Mas apenas alguns dias depois,
enquanto Moisés ainda estava no monte, o temor pelo grande Jeová dissipou-se e
foi redirecionado para a adoração muito mais controlável de um bezerro de ouro
(Êx 32.4). O temor inicial de Deus havia desaparecido, chegando ao ponto de
eles não sentirem nenhuma inibição em festejar e dançar bem debaixo da sombra
da montanha estrondosa.
A julgar apenas pela história da primeira geração de israelitas, até as
experiências espirituais mais intensas não provocam necessariamente
efeito sobre a fé ou sobre o comportamento. Essa conclusão é dura, mas se
confirma pela experiência de outras pessoas na Bíblia. Veja, por exemplo, a
história de Balaão. As experiências espirituais desse cananeu enigmático são
realmente impressionantes e incluem uma visita do anjo do Senhor (Nm 22.23-25),
várias visões do próprio Jeová (Nm 22.20; 23.4,16; 24.16) e um revestimento
incomum com o poder do Espírito (Nm 24.2). Assim mesmo, apesar dessas
experiências estonteantes, não há nenhum sinal de que ele tenha se convertido.
Pelo contrário, Pedro refere-se a ele como exemplo de réprobo (2 Pe 2.15), e
Jesus, na visão de João, descreve-o como a quintaessência da idolatria (Ap
2.14).
A história de Saul é outro exemplo. Sua unção já foi referida num exemplo
de como a presença do Espírito pode produzir mudanças impressionantes e
perceptíveis no comportamento. Mas o fim dessa história não é que Saul saiu
daquela experiência para uma vida de serviço e obediência. Pelo contrário, anos
depois ele foi rejeitado por Deus por causa de desobediência contumaz (1 Sm
15.22, 23).
Não é difícil encontrar outros exemplos. O rei Acabe arrependeu-se certa
vez de seus pecados com choro e pranto (1 Rs 21.27). Mas de nada serviram seus
sentimentos, pois o comportamento não mudou. No final, seu nome tornou-se
sinônimo de mal e idolatria (1 Rs 16.30; 2 Rs 8.27). O apóstolo João diz que
muitas pessoas ficaram grandemente impressionadas com a ressurreição de Lázaro
(Jo 12.17-19) e expressaram o zelo recém-adquirido na entrada triunfal de
Cristo em Jerusalém. Havia clamores por toda a cidade. Mas apenas alguns dias
depois, quando Jesus estava na presença de Pilatos, o fervor daquelas pessoas
não mais podia ser encontrado. Com Jesus diante delas, houve grande clamor, mas
de outra natureza. Não se ouvia mais hosana, hosana, mas, crucifica-o,
crucifica-o. Paulo descreve uma mudança semelhante entre as igrejas gálatas.
Ele se refere às intensas afeições nutridas por elas no início, quando
abraçaram a nova fé, porém mais tarde ele teme que tudo tenha sido em vão e que
tenha trabalhado à toa (Gl 4.15). Os ouvintes cujos corações eram como o solo
rochoso de Mateus 13 deram prova de zelo espiritual, à semelhança dos fariseus,
mas no final revelaram-se irregenerados. O elemento comum a todas essas
histórias é que nem emoções intensas nem experiências de êxtase produzem
necessariamente fé ou efeitos duradouros.
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